AS BODAS DE DEUS, João César Monteiro, 1999 por João Bénard da Costa Tudo parece perdido Começa
assim a sinopse de As
Bodas de Deus que César Monteiro reuniu em volume com os
argumentos de Le bassin
de J.W. e destas mesmas Bodas
de Deus, em Outubro de 1997, cerca de dois anos antes da estréia de As Bodas no Festival de Cannes. A frase
funciona para João de Deus tal como o vemos na Cena 1, esfarrapado e hirsuto,
com uma lata de sardinha em conserva, um naco de pão e meia garrafa de tinto
rasca. Quem se lembra como ele acabava na Comédia
de Deus não se pode espantar muito. Mas a
frase também funciona para João César Monteiro que não conseguiu levar a cabo
em 1995 o seu projeto de filmar A
Comédia e As Bodas como um só
filme, em duas partes, a primeira em Lisboa como viria a acontecer e a
segunda em Paris como nunca viria a acontecer. As peripécias parisienses
foram tais, aí por 96-97, que João César teve que desistir. Chegou a pensar
que a “teologia de Deus” ficaria incompleta e apagou as mágoas em Le bassin de J.W.,
filmado em Maio e Junho de 1997. O péssimo acolhimento reservado a esse
filme, a “desorientação” (sincera ou fictícia) que o realizador disse ter
experimentado durante e após Le bassin,
a impossibilidade de retomar em Paris as filmagens de As Bodas de Deus,
levaram-no a considerar que para ele, como para o seu personagem, “tudo
parecia perdido”. Até que
“in dulce jubilo”, num “velho parque solitário e gelado” duas sombras se
encontram: a de Deus e do Enviado de Deus, novamente Luís Miguel Cintra,
agora sob a aparência de um oficial da marinha mercante. “Num velho parque
solitário e gelado” é a tradução literal do primeiro verso do conhecido poema
de Verlaine, Colloque Sentimental. “Dans un vieux parc solitaire et glacé /
deux formes ont tout à l’heure passé”. Só que João de Deus e o Enviado não
são propriamente amantes desunidos, como em Verlaine, e o parque está longe de
ser solitário e gelado. É uma mata frondosa (Sintra) junto a um lago numa
tarde soalheira. Da sinopse ao filme passou-se da solidão e do gelo à luz e
ao sol. Mas
Verlaine não foi citado por acaso. Ainda João de Deus está a contar as notas,
quando ouve o ruído de um corpo a cair ao lago. É uma menina chamada Joana
(Rita Durão). Por causa de Joana, João só por milagre (mais outro milagre)
não ficou sem o dinheiro. Mas não se salva uma vida Mais uma
vez tudo é uno e só mentes rasteiras podem opor - ou mesmo justapor -
maminhas e pentelhos ao apelo da Graça. Em Bresson, tratava-se de um ladrão e
ninguém se chocou. Aqui, no caso de um erotômano de tendências pedófilas,
voltaram com a conversa da abjeção e do sublime. Mas toda a seqüência é
celestial, e é esse o diálogo que rima com o poema de Verlaine. Joana é Joana
de Deus. E é ela quem espera João à saída da cadeia para as bodas que César
pensou filmar (estão no script publicado) e avisadamente não filmou. Porque a
comédia acabou com a citação de Bresson e só resta um casal e um burrinho,
como na Fuga para o Egito ou como no final de Le bassin de J.W. Entre a
seqüência do salvamento a as da prisão, decorre quase todo o filme em tom
aparentemente mais “grazioso” do que os dísticos precedentes. Rico, João
de Deus mudou de classe e passou a Barão de Deus. O mundo dos ricos não é o
mundo dos pensionistas nem o dos sorveteiros. “Deus não dorme” diz-lhe Joana
quando lhe conta a vida, outra vez sob fundo de mar. “Mas eu durmo”, responde
ele. Segue-se o fabuloso plano da romã - a imagem mais inesquecível deste
filme - a cada um, cada metade, como só será evidente no final. Vão
começar os sonos e os sonhos do Barão, que incluem uma princesa polaca e um
príncipe árabe. O Barão julga-se numa comédia e está numa tragédia. Ganha ao
jogo e perde aos amores, depois de três das seqüências mais irrisórias da
obra de Monteiro, por uma vez seduzido pelos fantasmas de Buñuel. Retenham-se: a) A
meia-hora no pavilhão das rosas, quando a princesa Elena (Joana Azevedo)
proporciona a João de Deus a visão da sarça ardente. b) A
seqüência da Traviata c) A
“noite de amor” entre a Princesa e João. Deus exigiu demais de si próprio ou
pelo menos exigiu tanto como o realizador ao ator. Filmar uma cena de cama
com um belo corpo feminino nu e um corpo masculino, igualmente nu, mas de
magreza e idade obscenas, podia ser uma das cenas mais abjetas jamais
mostradas. Nunca o é, por um prodígio de mise
en scène inigualável. João de Deus dorme pela última vez. Quando acorda,
já a princesa e os milhões vão longe e o monstro de Baal não deita fumos, nem
mete medo. Mais uma
vez, João de Deus é expulso do Paraíso. Só lhe resta procurar o seu velho
Lívio, o enviado de Deus, para tornar crível a história da sua fortuna e para
que este o ajude uma vez mais, com sapatos de defunto. Mas, no
termo da trilogia, o seu duplo, doido varrido, e assumindo-se por Jesus
Cristo depois da Ascensão, já não o reconhece e expulsa-o também. Nem Deus
deve tentar tanto a Deus. E as últimas palavras do Enviado são os versos: “Quando
eu subi aos céus / Disse para todos os mortais / Fodam-se vocês agora / Que a
mim já não me fodem mais”. Faltava o
tema do Nosferatu. E ele vem. Nas fantásticas contorções de João de Deus na
cela, ouvindo E lucevan le stelle da Tosca de Puccini. A citação do
discípulo de Nosferatu (o das moscas) é óbvia. Mas João de Deus não espera
nem convoca o Maligno. É Joana quem o vem esperar. Na
sinopse, João César Monteiro concluiu “Tudo é matéria de gelado, quod erat
demonstrandum”. Mas isso era quando pensava terminar o filme no cume gelado
da serra da Estrela. Ao terminá-lo numa curva do caminho (“morrer e só não
ser visto”, como dizia Pessoa), reenviou a trilogia ao mesmo signo com que a
iniciara: a Mãe de Deus e os pobres de Deus, esses que “coitadinhos” vão e
vêm, vêm e vão, e Dafné acaba por buscar, à hora da morte, para verem face a
face o que nesta vida só puderam ver como num espelho. Ou como num filme, que
é também para isso ou talvez só para isso, que o cinema serve. O
eterno
retorno. Ou, já que tanto citei, “pagar para ver”, como se diz no
poker e no
filme, João César Monteiro pagou, sabendo - como nos outros filmes da
trilogia - que só Deus pode ver tudo e que esse é o principio essencial
da
tragédia. Nota: [1] É um termo usado
em Portugal, algo semelhante ao nosso “vou ter um treco, um troço” [n.d.e.]. |
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