CLAMOR DO SEXO, Elia Kazan, 1961 por João Bénard da Costa
“Eu sei que Deannie Loomis não existe / mas entre as mais essa mulher
caminha / e a sua evolução segue uma linha / que à imaginação pura
resiste.” Começa assim o soneto intitulado “Esplendor na Relva”, que Ruy Belo inseriu em Homem de Palavra[s].
Deannie Loomis (aliás Wilma Deannie Loomis) é o nome da protagonista
interpretada pela fabulosa Natalie Wood. O pretexto (em sentido literal)
é o filme de Elia Kazan Splendor in the Grass (1961), com argumento de William Inge. Hoje,
o filme ganhou ressonâncias míticas, associado aos idos de 60 e aos
Maios de tal década. Na altura, não as teve e foi mesmo, da América a
Portugal, implacavelmente zurzido pela crítica que o achou piegas e
cabotino. O público também não ligou peva. Mas para alguns - poucos, e
certamente não felizes - foi paixão tão devastadora como a que, no
filme, os adolescentes Deannie Loomis e Bud Stamper (Warren Beatty)
tiveram um pelo outro. Ruy Belo foi desses. Aliás, não certamente por
acaso, foi ele o único poeta que conheço a cantar as duas mulheres mais
intensas dos late fifties e dos early sixties: Marilyn Monroe (esse assombroso poema chamado “Na Morte de Marilyn”, que vem no Transporte no Tempo e em que nos pede para “em vez de Marilyn dizer mulher”) - e Natalie Wood. Eu
sei que Ruy Belo não cantou Natalie Wood mas Deannie Loomis. Mas também
sei que Natalie Wood “não existe / mas entre as mais”, etc. E há nesse
verso um prodígio de adequação poética. É
quando se diz que “a sua evolução segue uma linha / que à imaginação
pura resiste”. Resiste à “imaginação pura” (no sentido de “pura
imaginação”) ou resiste, “pura”, à imaginação? Ou seja, o adjetivo
“pura” refere-se à imaginação ou a Deannie Loomis? Ou - pode ser também -
à “linha que resiste”? Nestas três perguntas está o cerne de Deannie
Loomis, de Natalie Wood e de Splendor in the Grass. São mulheres e
filme da nossa imaginação? São mulheres e filme que resistem à nossa
imaginação? Ou são mulheres e filme que resistem a uma linha evolutiva
que só na nossa imaginação existe? Não sei, como provavelmente Ruy Belo
não saberia, mas, como também ele escreveu (na “explicação preliminar” à
2ª edição do livro): “Ninguém no futuro nos perdoará não termos sabido
ver esse verbo que tão importante era já para os gregos.” E, em Splendor in the Grass,
tudo está no ver, que traz a história dos meninos e moços de Kansas -
meninos e moços dos anos 20, de antes da Depressão - à dimensão das mais
belas histórias de amor e de morte jamais contadas. Sirvo-me
do exemplo mais conhecido, também ele poético, e que dá o título ao
filme. No liceu de Natalie Wood, onde ela entrava sempre com três livros
apertados ao peito, um deles de capa azul, a aula de literatura, nesse
dia, não era sobre Os Cavaleiros da Távola Redonda mas sobre Wordsworth e a Ode of Intimation to Immortality. Deannie/Natalie chegava de vestido grenat
muito escuro, gola de rendas. Todas as colegas sabiam - e ela também,
embora ninguém lho tivesse dito - que Bud/Warren, incapaz de separar por
mais tempo o desejo e o amor, tinha enganado, na véspera à noite, a
fome do corpo dela, no corpo de Juanita, única da turma que não se
ficava pelos beijos. Nada seria mais, para eles, como antes fora. Como
também se diz no filme (noutro contexto), Deannie trazia, debaixo do
vestido, o primeiro golpe na sua própria carne. E
é quando todo o mundo vacila à roda dela que a professora a interpela
para lhe perguntar o que é que o poeta quis dizer com os versos famosos:
“No, nothing can bring back the hour / the splendor in the grass, the
glory in the flower.” Para a estúpida e pedagógica pergunta não há
resposta, ou a esse nível só há a que Natalie Wood comoventemente tenta
articular. Mas não é nada disso que o poeta quis dizer. O
que conta, o que o poeta quis dizer, é o que Natalie só naquela altura
sente e sabe, ou pressente e entrevê. Por isso, o que conta e o que o
poeta quis dizer é o espantoso travelling que arranca Deannie do lugar e
a põe diante da professora atônita, depois daquele outro em que sai a
correr da aula e nos atira com a porta na cara e, por fim, esse plano em
que a vemos, sozinha, na profundidade de campo do corredor do liceu,
até ir parar à enfermaria. Nesse minuto de cinema, sabemos, para além
das palavras, que “that radiance that was once so bright / Is now
forever taken from my sight”. Irradiância que, no filme, foi entre
o plano inicial (Deannie e Bud a namorar nas cataratas, e ela com tanto
medo de não agüentar mais) e essa seqüência, também nas cataratas, em
que Bud fez com Juanita o que não fez com ela e de que essas cataratas
são a mais poderosa das metáforas. O
“esplendor na relva” é o que vimos até à aula: são os planos em que se
deita de bruços na cama (Warren Beatty deita-se da mesma maneira); é o
búzio encostado ao ouvido; são os ursos de pelúcia coexistindo com o
retrato dele; é o dia em que entrou no liceu ao lado dele, tão
orgulhosa, de blusa amarela e saia branca; é o plano da ducha dos
rapazes; é a noite de chuva no carro amarelo e Deannie a dizer a Bud que
ficará para sempre à espera dele; é uma saia cor-de-rosa que funde em
negro; é, sobretudo, a estarrecedora seqüência em que Bud a obriga a
ajoelhar-se-lhe aos pés e ela desata a chorar. Aflitíssimo, Bud diz-lhe
que era uma brincadeira. E ela a responder: “Não posso brincar com estas
coisas. Eu era capaz de fazer tudo o que tu me pedisses. Tudo. Juro que
era.” Mas
é depois da seqüência da aula que o filme atinge o máximo de beleza e
tensão, desde longo período em que Deannie se isola até à crise que a
leva ao manicômio. Natalie Wood começa por cortar os cabelos ao espelho
(iniciaticamente) e, depois, veste-se de encarnadíssimo (bandelette
encarnada, colar encarnado) para se oferecer a Bud na seqüência da
festa, para ser recusada por Bud e, depois, correr pelos rails até às cataratas (terceira e última presença delas no filme) e mergulhar nas águas, onde até a morte lhe frustram. Mas nem Wordsworth nem Kazan terminam no desespero ou nesse desespero. Após os versos que dão título ao filme, Wordsworth diz: “We will grieve not, rather find / strength in what remains behind.” Não
estou nada certo que seja “força” o que Natalie Wood encontrou na relva
da clínica, entre velhas catalépticas e enfermeiras de olhar estranho.
Não estou nada certo que seja “força” o que Warren Beatty encontrou na
universidade para onde o mandaram, ou na noite de Nova York em que o pai
lhe pagou uma “rapariga parecida com Deannie”. Mas “o que ficou para
trás”, isso, introduz-se a cada plano do lento desmoronar deles,
das famílias deles, da América da crise de 29, de um mundo com tais
valores. Elia
Kazan disse preferir no filme a seqüência em que Deannie regressa à
casa paterna, ao que dizem “curada”, e conversa com a mãe que lhe diz
que tudo o que fez foi para bem dela. Já está noiva do “rapaz de
Cincinatti”, que conheceu no hospital e Bud já está casado com Angelina,
que não tinha entrado na história e até já tem um bebê. Deannie vai
visitá-los, com as amigas. Não há uma palavra sobre o passado e há só o
passado. Depois do “esplendor na relva”, Bud fica com as capoeiras e ela
com um companheiro das trevas. “Como numa tragédia grega: sabemos o que
vai acontecer e só podemos ver o que acontece.” Estas palavras são de Kazan. Mas esta tragédia americana
não acaba em mortes violentas. Só na morte que cada um de nós traz
dentro de nós, feita de tudo “what remains behind”. “We will grieve not”
e, por isso mesmo, a nossa dor é muito maior. De Deannie Loomis e de
Bud Stamper me despeço com outro poema de Ruy Belo: “Mas agora que
cantei da tristeza / não observo já os mais leves traços / e a minha
maneira de me matar / é deixar cair ambos os braços.” É a isto que se
chama “intimação à imortalidade”? |
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