LUZES DA RIBALTA, Charles Chaplin, 1952

por João Bénard da Costa


“Só há duas maneiras de ter razão” escreveu algures Fernando Pessoa. “Uma é caIarmo-nos, a outra, contradizermo-nos”. Para Chaplin, cujo problema maior, nos anos dificilíssimos que foram da estréia de Monsieur Verdoux (1947) à de Limelight (1952) era ter razão, ou que a sua razão lhe fosse reconhecida, calar-se não era solução, antes era dar razão aos adversários. Só lhe restava contradizer-se. Ou seja, abandonar o anarquismo e o pessimismo que o seu último personagem arvorara e regressar a outra vertente do seu gênio: o melodramatismo. Um grande melodrama com todos os ingredientes do mito chaplinesco e que voltasse a dar a ver o Vagabundo (e a dá-lo a ver sob luz total) deve ter-lhe parecido o melhor meio de reconciliar tudo e todos com ele próprio, de se fazer “perdoar” e de se voltar a fazer aceitar.


Nunca o vi escrito em parte alguma, nem nenhuma declaração (de Chaplin, ou alheia) me autoriza a convicção. Mas só consigo interpretar a escolha de Limelight, depois de filmes sucessivamente mais imbricados com a realidade global que o rodeava (Modern Times, The Great Dictator, Monsieur Verdoux) pela vontade, consciente ou inconsciente, de Chaplin em pôr fim às tempestades que ele próprio (com esses filmes) desencadeara. A cabeça branca de Chaplin, a cabeça branca de Calvero, sempre me pareceram a “bandeira branca” levantada para restabelecer a paz e a harmonia. Aos seus detratores, oferecia-se de corpo inteiro, pela primeira vez sem disfarces nem máscaras, e oferecia uma história que não podia deixar de ser vista como a história da sua vida. Mais ainda: como a história de quarenta anos de espetáculo (circo, vaudeville, teatro e cinema) de que Limelight seria simultaneamente o requiem e o testamento.


Os comentadores têm destacado o contraste (“contraste dramático”) que caracteriza a obra e a vida de Chaplin nos anos 40, Como escreveu o seu principal biógrafo (David Robinson) “a década que se seguiu à estréia de O Grande Ditador foi, ao mesmo tempo, o período mais amargo da sua carreira pública e profissional e o período em que conseguiu, finalmente, a felicidade pessoal que até aí sempre havia tentado e sempre lhe havia fugido”.


Robinson referia-se, como se saberá, às múltiplas campanhas que se desencadearam contra ele (acusando-o de comunista, de libertino, de devasso, de corrupto) e ao “casamento feliz” com Oona O’Neill, 35 anos mais nova do que ele. O quarto casamento de Chaplin foi o único que durou, desde 1943 até a morte dele, em 1977.


Como se sabe, o auge dessa campanha seguiu-se, em 1947, à estréia de Monsieur Verdoux. O filme foi banido ou proibido em muitos estados americanos e, na imprensa e na rua, gritaram-se slogans como: “Chaplin é comunista”; “Rua com o estrangeiro” (Chaplin havia mantido sempre a nacionalidade inglesa e nunca se naturalizou) “Chaplin vive à nossa custa há tempo demais”; “Chaplin para a Rússia”. Pior do que tudo isso: o filme fracassou comercialmente e a United Artists (a orgulhosa casa que os “grandes artistas” de Hollywood haviam fundado em 1919) estava em muito maus lençóis, com dívidas que ascendiam ao milhão de dólares. Sobre uma eventual venda e a distribuição de percentagens, Chaplin zangou-se com toda a gente, incluindo a sua velha amiga e admiradora Mary Pickford.


Na Primavera de 1947 (quase coincidindo com a estréia de Monsieur Verdoux) J. Parnell Thomas, um senador de New Jersey, foi nomeado para presidir a Comissão de Atividades Anti-Americanas. No ano da chamada “doutrina Truman” (convidando todos os americanos a lutar contra a expansão comunista) ia começar a famosa “caça às bruxas” que atingiu o auge no início dos anos 50.


Ao princípio, Chaplin parece não ter tomado muito a sério campanhas e Comissão. Chegou mesmo a dizer que se a Comissão o convocasse compareceria vestido à Carlitos e meteria os interrogadores a ridículo. E provocou a Comissão, em finais de 47, quando telegrafou a Picasso a pedir-lhe que encabeçasse um comitê de artistas franceses que protestasse, junto da embaixada americana em Paris, contra a perseguição de que estava a ser vítima, na América, o conhecido músico e poeta alemão Hanns Eisler (Eisler foi deportado em 1948, acusado de ser comunista).


Pedir a um “conhecido comunista” (Picasso) que intercedesse por um homem acusado de comunismo (Eisler) num país em histeria anticomunista foi algo que imediatamente alguns senadores consideraram “perilously close to treason”. Simultaneamente, Chaplin fez campanha com o partido progressista do antigo vice-presidente Wallace, convencido que este ganharia as eleições de 1948. Não ganhou e só nessa altura Chaplin pareceu ter¬-se dado conta das ameaças que o rodeavam. Tinha planeado ir mostrar Londres e os bairros em que tinha nascido a Oona. Percebeu que, se fosse, não o deixariam voltar e que todos os seus bens e toda a sua imensa fortuna estavam em causa. Da desenvoltura, Chaplin passou a uma paranóia persecutória, bem refletida nas suas memórias. Como Verdoux, tremia de cada vez que lhe batiam à porta. Entretanto, a família crescia: aos dois filhos que tinha tido de Lita Grey (nos anos 20), Charles Jr. e Sydney, juntaram-se, vinte anos mais novos, Geraldine (n. 1946), Michael (n. 1947), Josephine Hannah (n. 1949) e Victoria (n. 1951). Eram os quatro primeiros dos oito filhos de Chaplin com Oona, nascidos entre os 56 e os 73 anos do pai (Christopher James, o mais novo, nasceu em 1962).


Por coincidência ou não, é na altura em que declara a Thomas “Não sou um comunista. Sou o que vocês chamam ‘um apóstolo da paz’”, que Chaplin anunciou um novo filme, ao princípio chamado Footlights, depois, Limelight. Não será astuto vê-lo como a “representação” que Chaplin quis dar perante a Comissão de Thomas. Só que não voltava vestido de Carlitos (sabia bem que qualquer ressurreição de Carlitos era impossível) nem vinha meter a ridículo ninguém. Ao mundo e aos homens, oferecia em espetáculo a sua própria vida, na obra mais autobiográfica da sua carreira.


Evidentemente, Calvero não é Carlitos ou não é só Carlitos (Chaplin disse depois de ter retido muitos elementos da vida de Frank Tinney, um celebérrimo palhaço americano, que ainda tinha visto nos palcos, quando chegou à América). Evidentemente, e por maiores que fossem os problemas por que Chaplin passava nesses finais dos forties, estava longe de ser um “has been” como Calvero, ou de viver num quarto a contar tostões e a beber copos. Mas também, evidentemente, Chaplin sentiu nessa altura, mais do que nunca, o drama enunciado na frase com que abre Limelight: “The glamour of limelight from which age must pass as youth enters”. E terá sentido, igualmente, que um mundo acabava, precisamente esse mundo de que Calvero (como ele) tinham sido figuras maiores: uma tradição, com quase 200 anos, que viera da commedia dell’arte para o circo e para o music hall e destes para o cinema mudo. Se quisermos, podemos ir ainda mais longe: era o mundo do bobo - o mundo em que o bobo era o único a quem tudo era permitido - que estava a acabar. Quem, melhor o podia homenagear e reafirmar do que o último e o mais célebre filho dessa plêiade?


Pode ver-se no que acaba de dizer muita especulação. Mas sabe-se que Chaplin abordou esta obra de modo muito diferente a todas as outras. Em vez de um script escreveu uma novela (onde são explícitos os traços autobiográficos de quase todos os personagens); documentou-se, exaustivamente, sobre as histórias de music hall no ano em que começa o filme (1914, precisamente o ano em que ele iniciara a carreira cinematográfica) e nunca ocultou que Calvero era, também, uma homenagem ao seu pai, que nascera e decaíra como ele e que, como ele, passara da efêmera glória à bebida e completo esquecimento.


E será casual o fato de ter confiado o papel de Neville - o seu rival, aquele que lhe vai “roubar” Claire Bloom - ao próprio filho, Sydney? No filme, ao contrário da vida, Calvero não acredita que Terry (aproximadamente da idade de Oona, quando ele conheceu Oona) esteja sinceramente apaixonada por ele ou possa ser feliz com ele. Sempre prevê que um dia um jovem vai chegar... Que esse jovem seja o seu próprio filho (que, aliás, teve um affair com Claire Bloom durante as filmagens) dá que pensar.


Aliás, Chaplin convocou para esta obra não só inúmeros fantasmas do passado (o número das pulgas era um dos seus números favoritos, que, ao menos desde The Circus, sempre tinha querido meter num filme) como os fantasmas do presente. E lá estão, na primeira seqüência (miúdos da rua) Geraldine, Michael e Josephine Chaplin, os três filhos mais velhos do seu casamento com Oona. A própria Oona dobrou, em duas seqüências, Claire Bloom.


Mas o maior dos espectros deste filme é, sem dúvida, Buster Keaton. À época quase esquecido, aquele que, hoje, muitos consideram ter sido autor e ator de gênio superior ao de Chaplin, foi convocado para esse genial número musical que é, simultaneamente, apogeu do slapstick e máxima homenagem a ele. E é difícil não reconhecer que, na sua famosa cena com as pautas, quase rouba o número a Chaplin, da primeira e única vez em que este aceitou contracenar com um grande cômico (Jack Oakie e Martha Raye, respectivamente em O Grande Ditador e Monsieur Verdoux, também o foram, mas pertenciam a outra família e outras tradições).


Limelight é um filme concebido em função desse “clou”: a glória do slapstick (o número das pulgas, o violinista embruxado, a queda no tambor) e o triunfo do grande cômico coincidindo com a sua morte. Calvero morre no palco, olhando a sua última criação (Claire Bloom) que dança circularmente, refazendo o eterno retomo. Com ele, e nessa figura circular tão cara a Chaplin, “the show goes on”, na melhor tradição do “Limelight”.


É o fim perfeito, para o perfeito melodrama e Chaplin não descurou um elemento para essa apoteose: o seu hino à vida, junto a Claire Bloom; a cena em que esta volta a andar; o tema da Colombina e de Arlequim; a reflexão sobre a arte como vaidade do mundo e glória do mundo. Tudo, neste filme, aponta para o perfeito testamento e sabe-se que Chaplin o concebeu como tal, sempre julgando - e dizendo - que se tratava do seu último filme.


Se o não foi, continua a ser o filme mais recapituIatório de toda a sua carreira, aquele que mais exemplarmente reflete o seu credo artístico e o seu credo humano. De todas as suas máscaras, mais ainda do que Carlitos, Calvero é a suma representação de Chaplin, na sua grandeza e no seu lado “humano, demasiado humano”.


Aos 63 anos, acusado por todos os lados, mais controverso do que nunca, Chaplin legou ao mundo, através do mais exacerbado melodramatismo (sustentado pela celebérrima música deste filme e pelo seu celebérrimo tema) a coreografia exata das suas crenças e dúvidas, da sua arte e do lugar que nela assumiu.


Mas se com Limelight voltaram todas as apoteoses (as estréias célebres de Londres, Paris ou Roma com “toda a Europa” aos pés dele) só não voltou o que ele mais teria tentado: a reconciliação com o público americano. Já a bordo do Queen Elisabeth para uma estréia que sempre quis londrina (em homenagem à sua cidade natal) Chaplin foi secamente informado que se cumprira a ameaça que desde 1948 temia: o governo americano não o deixava voltar e Limelight só vinte anos depois (em 1972) pôde ser visto na América. Em 1952, iniciava-se o “exílio europeu” de Chaplin, que ia viver na Suíça, em Vevey, os últimos 25 anos da sua vida. Se, com Limelight, não terminou a sua obra, com Limelight terminara os 40 anos da sua vida na América. Em 1912, nasceu Carlitos. Em 1952, morreu Calvero. Nesses 40 anos cabe um mundo. E é desse modo - e sobre esse mundo - que Limelight é feito. Quando Carlitos começou, a publicidade falava de “riso e talvez uma lágrima” (como se diz na epígrafe de The Kid). Limelight inverte a regra. Se nos convida ao riso - em tantos e tão geniais momentos - convida-nos sobretudo às lágrimas. E mesmo quem se recusar à lógica do melodrama, dificilmente verá Limelight de olhar enxuto. Porque em Limelight se exprime (parafraseando Calvero) não sentido da vida, mas desejo da vida. Só quem pôs esse desejo acima de qualquer sentido se pode perfazer na morte no palco, olhando o movimento que o perpetua, e tendo ao seu lado, na profundidade de campo - último velador - o único homem (Buster Keaton) que tanto como ele acreditou na força desse desejo e na capacidade transfiguradora do cinema para o exprimir.


 

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