INTRODUÇÃO AO FESTIVAL DO FILME MALDITO
por Jean Cocteau


É importante explicar o significado exato da palavra “maldito” aplicada ao domínio do cinematógrafo.

O termo “poetas malditos” é de Mallarmé. Ele designa os poetas cujas obras transbordam os limites convencionais e ultrapassam a linha abaixo da qual se exprimem os poetas medíocres. Esses poetas malditos escapam à análise e os juízes preferem condená-los automaticamente. Disso resulta que eles não aproveitaram mais as vantagens daquilo que permanece visível; eles se tornam invisíveis, salvo aqueles cujos olhos enxergam longe e amam escrutinar as doces luzes insolentes e profundas.

A invisibilidade que Mallarmé batiza de maldição é produzida, além disso, a partir do momento em que um homem busca contradizer uma moda, ainda que de ponta. É então que a invisibilidade se torna perfeita, pois ela não será beneficiária do prestígio dos enigmas. Após uma longa época de enigmas, a audácia se apresenta sob os auspícios da simplicidade. Eis um grande minuto de silêncio. Pois nem os simples nem os intelectuais a reconhecem.

Pareceu-nos urgente assinalar o problema que aflige o cinematógrafo. Não é ele a arte que não pode, que não deve esperar, e cujos gastos obrigam retornos imediatos? Ora, para algumas almas mais e mais raras, o cinematógrafo é um meio admirável de dar corpo aos sonhos pessoais, de permitir a um grande número de pessoas participar de coisas secretas, de expulsar e de orquestrar a solidão. Bem entendido que por sonhos eu não me refiro aos sonhos do sono, mas a espetáculos que se organizam na noite do homem e que o cinematógrafo projeta em plena luz. A noite das salas assemelha-se então àquela dos corpos humanos, onde uma multidão de indivíduos sonharia um mesmo sonho. Uma minoria não pensante ou mal pensante e possuidora de recursos que a permitem ser uma maioria tomou em suas mãos essa questão, desde a origem, ou quase. Uma minoria pensante a perturba. O sonho daquela é destruir essa minoria pensante e torná-la inofensiva. Ela decreta conhecer o público e saber o que ele merece. Como ela julgou o público à sua medida, ela o subestima. Ela decreta que sendo o cinematógrafo uma empreitada popular e o povo sendo uma besta, é capital não pedir deste o menor esforço. Esses ricos minoritários estão enganados. O povo é muito mais próximo da minoria pensante que da deles. Cada minuto o prova e aumenta o fiasco deles; mas como eles não querem se expor ao risco, eles recusam conhecer os motivos e declaram que a indústria cinematográfica está em baixa, que ameaça abrir falência.

O erro é de haver considerado o cinematógrafo unicamente pela perspectiva industrial. O cinematógrafo é uma máquina, porém o que ele fabrica não será vendido segundo os métodos das vendas de tecidos. Se os produtores tivessem a malícia de colocar suas garrafas na adega, eles perceberiam que seus triunfos estão mortos e que alguns de seus fiascos (os que eles consideravam como tais) poderiam lhes fazer fortunas. O fracasso inicial (considerado como definitivo no cinematógrafo) é a honra das obras-primas. Não nos enganemos: o fracasso não é obrigatório. Um sucesso de mal-entendido pode favorecer a troca. É assim que os filmes de Charles Chaplin, verdadeiros dramas de Kafka, se impuseram pelo riso desvairado, mas que agora são acusados de não serem mais tão engraçados, enquanto na verdade eles tomam seus verdadeiros lugares, pois agora o drama tem primazia sobre o cômico. É em virtude dessa descoberta que a minoria não pensante condena uma obra-prima onde Chaplin se resume: M. Verdoux. Os maravilhosos filmes de Harry Langdon eram da mesma ordem. Eles não foram considerados engraçados, claro. Eles arruinaram seus produtores e seu autor. Eles são os filmes malditos por excelência. Amor Sem Fim, A Noite Tudo Encobre, Ouro e Maldição, tantas obras-primas enterradas vivas.

É chegado o momento de homenageá-los e de soar o alarme. O cinematógrafo deve exibir seus títulos de nobreza e vencer uma escravidão que tantos homens corajosos buscam superar. Uma arte inacessível aos jovens não será jamais uma arte.

Responder-me-ão com números.

Eu responderei com números. O medo do risco arruína os produtores. Fecham-se as portas às surpresas. Os melhores filmes surgem em meio a dificuldades. Foi nos seus piores momentos que a Rússia, a Alemanha, a Itália brilharam nas telas do mundo. A partir do momento em que os países se recuperam (se enriquecem), a qualidade dos filmes cai. Tanto melhor que a minoria de que falo veja esses filmes de má propaganda e recaia em erros.

Não existe produção cinematográfica. Isso é uma farsa. Não mais que produção literária, pictórica ou musical. Não há anos de bons filmes como há anos de bons vinhos. O belo filme é um acidente, uma provocação aos dogmas, e são alguns desses filmes que desprezam as regras, esses filmes hereges, esses filmes malditos dos quais a cinemateca francesa é o tesouro, que nós pretendemos defender e apresentar no nosso Festival.

(Biarritz, 29 de julho a 5 de agosto de 1949. Traduzido por Matheus Cartaxo)

 

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